Texto: A Educação de Sentimentos

TOGNETTA, L. R. P. A educação dos sentimentos e a moralidade infantil. Anais doXIX Encontro Nacional de Professores do PROEPRE: “Construtivismo e Formação de Professores”.Campinas, SP: Faculdade de Educação, Unicamp, 2002, p.73-81.


Quem de nós nunca afirmou: “ No meu tempo, bastava um olhar de meu pai para que a gente parasse de apresentar qualquer comportamento inadequado”. “No meu tempo, o professor era respeitado, ninguém se dirigia a ele com insultos ou com alguma forma de falta de respeito”. Estaremos perdendo os valores que tínhamos? [leia mais]

A educação de sentimentos e a moralidade infantil

Luciene Regina Paulino Tognetta

Raiva, é uma coisa que a gente sente
quando as coisas não são como a gente quer.
Muita gente acha que a raiva é uma coisa feia,
aí elas tentam não ter raiva e ficam com mais raiva ainda
e fazem os outros ficarem com raiva também”.
Patrícia Gebrim


Parece que todos nós concordamos que em tempos atuais há uma angústia por parte daqueles que educam sobre os valores que as crianças de hoje demonstram ter. Um certo saudosismo emerge de nossa fala o tempo todo.
Não é por menos. Muitos de nós não sabemos mais como resolver os problemas de agressividade de nossas crianças e, conseqüentemente, nos inspiramos, como se na busca de uma solução mágica, num saudosismo dos tempos remotos.
Uma coisa é certa: o que as teorias morais demoraram tanto para compreender (de que há outras condições além do raciocínio lógico, além do pensar sobre direitos e deveres para se chegar aos valores naquilo que eles têm de melhor: sua condição de serem virtudes tão desejadas para que as pessoas sejam felizes), o cotidiano de educadores demonstra, com facilidade, essa parcela do desenvolvimento humano que precisa ser levada em consideração: a afetividade, ou se quisermos ainda, os sentimentos e emoções que movem o homem a uma ação (De La Taille, 2000; Moreno Marimón, 1999; Arantes Araújo, 2000; Tognetta, 2002).
“Por que as crianças não obedecem se falamos quinhentas vezes a mesma coisa? Por que não cumprem com um dever se afirmam reconhecê-lo, se sentamos, explicamos para elas que não podem, por exemplo, bater nos outros? Por que temos a impressão de que um sujeitinho de três anos “manda” em um adulto com trinta? Por que quando bato em meu filho ele faz pior?” É certo que nem sempre temos claras as respostas para essas perguntas, mas uma coisa é sabida: há algo que é preciso fazer diferente do que se tem acostumado como resquícios da educação que tivemos.
É nesse sentido que queremos afirmar que o cotidiano tem mostrado o que as teorias morais se esforçaram por provar: o pensar sobre os atos é condição necessária, mas não suficiente para a adequação de um comportamento. É grande o nosso esforço por trazer para esse cotidiano da educação, não necessariamente a escola, mas quaisquer setores que têm a tarefa de educar, os resultados de tantas buscas teóricas que tentam explicar os comportamentos humanos.
Como modificar os comportamentos das crianças, então? Temos estudado que para uma virtude ser construída é necessário que as crianças possam pensar e terem formado instrumentos cognitivos que lhes permitam sair de seu ponto de vista e ir para outro – a reversibilidade de pensamento permite isso. Por esse motivo, grande é a importância que se dá aos diferentes trabalhos que promovem o desenvolvimento do pensamento lógico entre as crianças. Esse pensar, em termos genéricos, se caracteriza por tomar responsabilidade que, por sua vez, é produto de quem toma decisão. Uma decisão é, nitidamente, resultado de um processo de escolhas realizado por quem pensa. (Tognetta, 2002)
Agora vejamos: que oportunidades de decisões são dadas às crianças quando resolvemos por elas pequenos conflitos? Na melhor das intenções, pais e professores acreditam que estão contribuindo com o desenvolvimento das crianças quando dizem a elas o que deveriam ter feito e o que devem fazer para resolver seus problemas. Porém, há uma grande diferença entre resolver tudo pela criança e não resolver nada. Crianças que não ouvem “nãos”, cujos pais e professores adotam posturas permissivas poderão se transformar em adultos frágeis que tentam a todo o momento se mostrarem melhores do que são, que se vitimizam ( Marques, 2000).
Bem, mas se a razão não é condição suficiente à moral, é preciso refletir sobre outra condição, perfeitamente humana, que é a capacidade de sentir. Quantos de nós nos esquecemos que quando as crianças batem, xingam, ofendem, elas o fazem por estarem sentindo raiva. Parece-nos absurda essa idéia: sabemos que ela sente raiva. Sabemos, mas não compreendemos. Sabemos, mas não nos demonstramos equilibrados o bastante para oferecer a elas nossa compreensão.
Historicamente as pessoas que demonstram sentimentos são consideradas mais frágeis, pouco espertas ou vulneráveis. Vejamos em nossa formação religiosa: quantas vezes ouvimos de nossos pais e catequistas que não poderíamos sentir raiva de ninguém (Rubin, 1997).
Certa vez a professora LUC realizava um trabalho com suas crianças de cinco anos sobre sentimentos. Propôs que as crianças montassem, em conjunto, um dicionário de sentimentos. Qual fora sua surpresa quando as crianças começaram a relacionar : “ amor, alegria, tristeza (misturando sentimentos a emoções) paixão, professora, que é aquilo que o namorado sente pela namorada...” Até que uma das crianças diz “raiva”.Prontamente, outras crianças se referem a esse sentimento dizendo “raiva não, raiva não é sentimento”. Quando questionadas pela professora sobre o porquê de tal afirmação as crianças acreditam que não poderiam colocar em sua lista o sentimento da raiva por se tratar de uma algo ruim. É o que temos aprendido por tempos: não se pode sentir raiva, o que é desprovido de verdade; o que não se pode é agir com violência.
Quando as pessoas apresentam-se agressivas ou violentas não se pode negar que tal comportamento é resultado de angústias, ansiedades, preocupações mal resolvidas. A maioria dos professores sabe disso. O diagnóstico é sempre preciso, dizendo que as crianças, constantemente, trazem problemas de casa. A questão é que, na maioria das rezes, ao tratar o comportamento agressivo tais professores desconsideram essas causas.
Não nos damos conta que o tratamento dado a violência é também sinal dela. Quando uma criança é castigada, o que acontece nem sempre é visível aos nossos olhos. Kamii (1991 a) se refere a três possíveis conseqüências do castigo e das punições: as crianças se rebelam, ou se conformam ou ainda calculam os riscos de serem pegas tendo um comportamento inadequado aos olhos do adulto. Por um outro olhar, a criança castigada sente-se incompreendida, não amada. Há uma fala comum entre nós de que “a melhor defesa é sempre o ataque”. Assim a criança age. Pode se sentir com tanta raiva a ponto de fazer ainda pior ou sentir-se tão pequenas, a ponto de formar uma auto-imagem merecedora de castigos e incapaz de realizar quaisquer outras tentativas de satisfação pessoal.
Uma mãe acostumada a bater em sua filha a cada comportamento inadequado que ela apresentava, certo dia, depois de reflexões como essas, resolveu que iria apenas conversar com ela sobre o ocorrido. A garotinha de quatro anos, com olhar firme e contrariado, diz para sua mãe: “Você não vai me bater? Estou esperando”. Se pensarmos no que está intrínseco no ataque verbal dessa criança, podemos perceber o que é comum acontecer entre os pequenos: o risco ou a conseqüência, neste caso, o fato da criança apanhar, é medido por ela. Caso ela pense que a satisfação pessoal pelo que vai fazer é tão boa a ponto de correr o risco de apanhar ou ser castigada, ela o fará. Castigos e punições apenas dão à criança o encorajamento para “pagarem suas dívidas” e ficarem livres depois de passado para cometer os mesmos“crimes” ( Faber, 1985; Samalin, 2000).
A fala da criança também nos leva a refletir sobre como resolvemos as situações-problemas em que haja conflitos: os velhos sermões com os quais utilizamos para adequar os comportamentos de filhos ou alunos podem ser considerados por quem os recebem como piores do que apanhar.
Na verdade, por muito tempo pais e professores tiveram uma interpretação equivocada do que seria conversar com as crianças para resolver os conflitos. Se tivermos clareza sobre esses dois pontos chaves, o pensar e o sentir, necessários a construção de uma virtude, seja a tolerância, seja a solidariedade, seja o perdão será preciso que tal diálogo seja propício à tomada de consciência pela criança. Isso só é possível se ela for instigada a reconstituir suas ações, agora em outro plano, e antecipar ações futuras; a escolher e tomar decisões que poderão torná-la mais responsável pelos acontecimentos. Por isso perguntamos “como você poderia ter resolvido isso de outra maneira?” “o que você pode fazer para que o fato não aconteça novamente?” São boas perguntas que promovem tais ações mentais a que nos referimos.
Necessariamente as tomadas de decisão por parte das crianças precisam partir de escolhas. Porém, as escolhas que proporcionamos às crianças precisam garantir o cumprimento de princípios e não serem baseadas em uma possibilidade qualquer. Contou-nos uma mãe certa vez, sua preocupação com as escolhas que dera a sua filha. Disse-nos, num de nossos cursos, que estava envergonhada por não ter garantido o cumprimento de um princípio e ter se baseado muito mais na ausência de seu auto-controle. Deu escolhas a sua filha: “ou você faz o que eu estou pedindo ou você apanha”.
NEID, a mãe que nos contou tal situação, tomara consciência de que não havia assegurado nenhum princípio além de nos apresentar uma bela lição de como lidamos com nossas próprias raivas ao educarmos uma criança. Iremos por partes: quando oferecemos a uma criança mais de uma possibilidade para resolver um problema, é preciso ter clareza de quem é o adulto da relação, que conhece e zela pela garantia de um princípio. Por exemplo: podemos oferecer a oportunidade de escolhas para uma criança que se nega a deixar o parque de diversões questionando-lhe se prefere sair sozinha ou gostaria que lhe ajudássemos a sair. Nunca diríamos se ela prefere sair ou ficar no parque. No primeiro caso, há a garantia de que o princípio “não se fica sozinho sem um adulto em parques”, seja cumprido. No entanto, tal atitude desprovida daquela bela lição a que nos referimos, pouco pode ser proveitosa: quando exprimimos nossos sentimentos e descrevemos os problemas e os sentimentos de uma criança, mais que palavras, nos colocamos à disposição de tomarmos uma atitude que indique as conseqüências naturais das escolhas que as crianças fazem.
Nunca é cedo demais para começarmos (Kamii,1991b ). Conta-nos uma professora, KEL, que certo dia havia combinado com seu filho de três anos que iriam ao shopping nos brinquedos eletrônicos. Porém, no caminho a criança passa por uma loja de brinquedos, abraça um pequeno caminhão e lhe diz com ares de autoridade“Mãe, compra esse brinquedo pra mim”. A mãe, com paciência, responde à criança,“ Meu filho, você se lembra que nós havíamos combinado que você iria brincar nos brinquedos eletrônicos? O que você prefere, brincar lá ou comprarmos o caminhão? “ Claro que a essas horas já se ouvia as birras e manifestações de descontentamento do pequeno MAT. A mãe, descrevendo o que via, mantém-se calma, para desespero do pai que retrucava ao contemplar o preço do caminhão: “ Vamos comprar, não é caro”. Insistindo com MAT, a mãe pacientemente descreve seus sentimentos: “ Estou vendo que você quer muito esse caminhão, mas você precisa escolher: se você quiser o caminhão, então não iremos nos brinquedos”. Qual foi sua surpresa quando MAT, ainda fitando o brinquedo nas mãos expressa convicto sua decisão: “Mãe, você compra outro dia?”. O que a mãe de MAT provou é que as crianças não podem ser privadas de sofrimentos (Faber, 1985). Muitos pais impedem que as crianças tomem decisões por pensarem que não podem sofrer. O valor que se constrói quando KEL oferece a MAT a possibilidade de escolher é maior de que seu sofrimento. Ele aprende a tomar decisões e a se responsabilizar por elas.
Vejamos o que a fala dessa mãe ainda nos ajuda a refletir: o tom de voz que usamos para conter um comportamento inadequado de uma criança também pode garantir os enfrentamentos e descontroles que tanto tentamos não apresentar nas resoluções de conflitos com as crianças.
Na verdade, o que pouco lembramos é que o corpo todo expressa sentimentos e emoções contidos sem,

Um comentário:

  1. oi .. acho que ficou faltando o finalzinho desse texto maravilhoso ..
    e obrigada , sempre , por nos indicar um caminho bom e possivel .
    beijos

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